Permitir A Desordem é Condição Para Aprender
| por time de pesquisa da Edu Vlld
Instabilidade, insegurança, vulnerabilidade. Palavras carregadas de medo, pesadas, indesejadas. Por que desejaríamos, afinal? Temos vivido hoje as consequências de um mundo fraturado, especialmente pela pandemia e seus efeitos; e a conclusão, caso ainda não soubéssemos pelas nossas próprias experiências de vida, é que não somos preparados(as) para enfrentar as instabilidades que aparecem.
Quando algo fora da ordem acontece com a gente, queremos logo “organizar”, botar na caixa. Não nos permitimos sentir o desconforto, não gostamos de experimentar os efeitos em nossos corpos, em nossa respiração ofegante, em um coração palpitando mais rápido.
Bom, calma lá. Há desordens de toda ordem! E aqui, estamos longe, muito longe de romantizar desordens e instabilidades pandêmicas. Mas chega perto, aqui: será que toda linha fora da curva é ruim? Será que o desencontro, o imprevisto, o incerto, não escondem, em suas entrelinhas, uma potência transformadora?
Em um curso de psicanálise da Universidade de Yale sobre o tema do trauma, a professora Shoshana Felman disponibilizou aos alunos uma sessão em vídeo de testemunhos de sobreviventes do Holocausto. Embora seus alunos já tivessem analisado em aula alguns textos literários de testemunho e teorias sobre o trauma, após a apresentação em vídeo dos testemunhos, Felman percebeu que a turma ficou inquieta. Os(as) alunos(as) passaram semanas sem parar de comentar sobre o impacto que havia causado ao assistir aos testemunhos, o que acabou a afetá-los(as) emocionalmente, sentindo-se vulneráveis. Mesmo em outras disciplinas, os(as) alunos(as) só falavam do que estavam sentindo. Para a professora, esse acontecimento foi inesperado. Ela não havia planejado — mesmo dentro do planejamento da aula — nem tinha imaginado que seus alunos(as) se sentiriam dessa forma. Foi totalmente imprevisível, tanto para ela, como professora, quanto para seus alunos(as). Esse momento inédito, do qual a imprevisibilidade tomou conta, levou a professora a escrever um artigo no qual defende que a “crise” em sua aula foi o fator que possibilitou novas construções que nunca haviam ocorrido antes.
A experiência da professora Felman nos mostra que a crise é um requisito para o encontro do novo, para a possibilidade de aprender — muito mais potente do que linhas dentro de curvas formais. Aprender é uma experiência de problematização, mais do que encontrar respostas:
“Ensinar, em si mesmo, ocorre apenas através de uma crise: se o ensinar não se depara com uma espécie de crise, se ele não encontra nem a vulnerabilidade nem a explosividade de uma dimensão crítica e imprevisível, ele provavelmente não ensinou verdadeiramente”*
Não há como a gente planejar a vulnerabilidade; ela ocorre quando nós nos permitimos experimentá-la, quando acolhemos o estranhamento; não porque queremos sofrer, mas porque a vulnerabilidade nos permite aprender a lidar com o imprevisto e com o incerto. Permitir espaço para a instalação da crise, portanto, é abrir os caminhos para uma aprendizagem atenta ao sensível e ao acontecimento, com potência pedagógica para o inédito.
* Texto “Educação e crise, ou as vicissitudes do ensino” Em: NETROVSKI, A.; SELIGMANN-SILVA, M. (Org.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000. p. 13–72.